21.2.10

Vila-Matas - As Noites da Iris Negra


"Logo ao chegar em Port del Vent tive a obscura sensação de que vir para esse lugar significava abraçar uma certa ordem, integrar-se, aceitar alguma coisa como a delegação de uma continuidade, como se chegar ali implicasse que não pode ser indigno de quem antes aqui esteve. Tem que ser como eles. Agora (parece nos dizer o povoado) parece ser a sua vez."

Enrique Vila-Matas
trecho de As Noites da Íris Negra.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.

...às vezes as metáforas ao acaso são impressionantes.
e as submetáforas têm sentidos dispersos.

entrar na dispersão para fazer sentido.
a dispersão também é ensaio. algo como estar inconsciente no meio, estar flutuante, esquecer-se.

só depois de esquecer é que é possível lembrar.
lembrar como movimento de rasgar os papéis,
[os rascunhos nunca são descartados: vão para outro lugar].
reescrever com tudo o que se escreveu antes na cabeça e nos olhos,
reescrever em papel cinza.

na ausência de linhas de controle, crio linhas desenhadas a sangue frio,
linhas que se confundem com que é escrito,
escritos que se confundem com o desenho [também linha] impresso a fogo nos papéis.
linhas profundas e rápidas,
deixam poucos vestígios porque olham para frente.
o sangue frio não é derramado,
é azul e está no fundo dos olhos.
é também estranhamente ligado ao passado.

Quando paro, começo a caminhar mais firmemente.


14.2.10

sobre o ver-se


publicar é dar um passo em falso no vazio.

é também ter outros olhos.
é também exercício do engano e do auto-conhecimento.

Vila-Matas - A Arte de Desaparecer


mais uma vez, comentários íntimos:
pensar sobre o jogo do anonimato e a função de viver/ escrever:

E sempre tinha existido nele uma recusa total ao protagonismo. Perder, por exemplo, era um jogo que ele sempre gostou.

Perder é vencer no jogo do "não estou aqui".

[...] fazendo-se passar por estrangeiro [...] sensação de extravio.

qual é a sua posição confortável no mundo?
conhecer todos é também não conhecer ninguém.
artifício de não ser visto, estando visível.

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução.

é necessário empenho.
desejo e vontade, para fugir das redundâncias....

... e também a impressão ou ainda a incerteza de que estou chegando à última etapa de uma viagem a qual fui aprendendo lentamente o difícil exercício de saber se perder no emaranhado do mundo impresso.
[...]
Publicar era e é, para mim, algo assim como arriscar-se a dar um passo em falso no vazio.

Antes, a esposa diz: ... nunca deixou que eu lesse os seus papeis, e por isso sempre vivi sem saber sobre o que você realmente escrevia.
ela não sabia sobre o que realmente ele vivia.

Ao final, Anatol sentiu doce o gosto do exibicionismo, e para viver outra vida, deixou sua obra impressa, e desapareceu mais uma vez.
Que tipo de exibicionista Anatol era?
Se todos somos em parte, mas de quais tipos?

acredito que ele não sabia do gosto de ser visto, e poder fingir que era milhares.
somos milhares, sempre.
e posso fingir muitos outros e mostrar muitas nuances.
a ficção como verdade e a verdade transmutada, porque viver é assim, enganar e se enganar.
é se perder observando os outros e esquecendo-se de si mesmo
[até que um íntimo lhe cutuque: - volta!].


Enrique Vila-Matas
trechos de A Arte de Desaparecer.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.


12.2.10

Vila-Matas - para a névoa irreal


À névoa azul ardente da Africa.
e dos dias que não conheci.
dos lugares que vivi em pensamento - some imagination.

é também em homenagem à irrealidade da névoa azul ardente da Africa que escrevo esta seleção.
só não é plagio porque é declarado,
só não é autoral pelo mesmo motivo.
mas antes, prefiro dizer que é uma ficção/documetário íntimo.
porque brincar com a tênue linha é desejo de caminhar entre dois mundos,
é desejo de ser vista no anonimato.

- O que vai ter para o jantar? - perguntou um exigente Bernd.
- A morte - ela disse. Apenas a morte.
[...]
Valia a pena deixar de lado a ideia do forno e gozar fugazmente da expressão de horror e surpresa de seu marido quando, pela primeira vez em trinta anos, a visse rebelar-se contra a sufocante violência de sua enorme indiferença.

eu já dizia isso há muito tempo: a indiferença é a morte.
a indiferença é um grito surdo, um raio de dor penetrante, sem voz.

Mas antes de lançar sobre ele o pote, disse a si mesma que apagaria as luzes da casa e apavoraria os três. Não pela escuridão, mas porque com sua voz rouca de gaivota gritaria o próprio nome na escuridão. E assim o fez, mesmo que ao final não tivesse apagado as luzes mas se limitado ao grito:
- Rosaaaaaaa Schwaaaaaaarzer.

sim. penso que todos nós pensamos em gritar.
e gritamos silenciosos muitas vezes.
mas o grito silencioso não se propaga, irradia para dentro.
Particularmente, Rosa me fez pensar em gritar o nome de alguns, algumas vezes, bem à sua frente. Para que olhassem a si próprios e me deixassem invisível.

A felicidade mata, e esses suicidas imitam não o inimitável, mas o inexistente, pensa Rosa Schwarzer enquanto pensa que também a irrealidade é desagradável.

No fundo, tudo está em perfeita e triste ordem.

Rosa escolhe o desagradável da irrealidade, apesar da morte irreal.
e assim penso em quantas vezes a realidade é muito mais surreal.
é assim que frequentemente o mundo se abre à novidade, bem à minha frente.
e escondo-me nos livros para pensar o que há de banal,
porque a novidade do mundo se esconde nas pequenas coisas, nos olhos bem abertos.
a novidade esconde-se no desejo e no profundo.
o profundo que penetra no peito fundo e pode ser sempre diferente.
às vezes me entra pelos ouvidos,
às vezes pela garganta.

não todos os dias.
em alguns, desapareço.

Enrique Vila-Matas
trechos de Rosa Schwarzer volta à vida.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.

12.1.10

Vila-Matas - Morrer por saudade


São muitas frases. sentenças que indicam lugares diversos,

apontando lugares dissociados neste mapa.
Partiram de outras, ordens tão diversas.

Porque não sei ordernar, simplesmente não ordendo.
Deixarei a desordem tomar sentido, já que é este o sentido deste lugar:

"Pode-se dizer fui me transformando em alguém que, depois de andar sem rumo pelas ruas, andava sem rumo em sua própria casa."

E foi assim que me fascinei pela possibilidade:
perder-me em meu redemoinho íntimo, no meu mapa interior.


Falou também: "...como se esse amor compartilhado pudesse gerar acontecimentos..."
Acontencimentos estão para além do que há de brusco e drástico nesta vida.
São um encontro de forças íntimas. Acontecimentos são desejos. Agressivos se a força vem só de um lado, mas isto não importa. Acontecem de qualquer modo.

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"... na vida, a vida é inalcansável. A vida está tremendamente por debaixo de si mesma."
E pensei que sempre temos saudades do que não conseguimos, que a saudade também é projetar o impossível. A saudade é desejo.

Fugir da plenitude é ter a vista vaga. Vaguear com o olhar porque nada do que admiramos faz sentido. Morrer dos desejos insatisfeitos.
Viver é a tentativa.

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"... ao ver aquele menino velho ferido profundamente por minhas palavras, descobri existirem frases que não eram inocentes, por mais vazias que parecessem; havia frases que possuíam, às vezes sem sabê-lo, agressividade."

Perigo na inocência, loucura na inocência.
A inocência é porta aberta:
uma corrente de mão-dupla passa por ela.

Intriga-me que na infância eu fosse tremendamente inocente e cruel.
Mas todas crianças não o são?
Talvez eu me assombrasse mesmo era com o impacto capaz de causar nos outros.
E portanto, comigo mesma.

Curioso como ao envelhecer,
Estou perdendo os dois, crueldade e inocência,
aos poucos, na mesma medida.

E continuo pensando-lembrando:
"Era a primeira vez que ouvia falar de um movimento que às vezes se produzia no homem e que se chamava suicídio, e lembro que me chamou atenção o fato de ser um movimento solitário, afastado de todos os olhares, perpretado na sombra e no silêncio."

Decidir morrer como quem decide ficar sozinho de vez.
Mas posso me isolar em vida também, algo mais ilusório, e talvez por isso mesmo, tremendamente mais triste.

Ou também: afastado do jogo, porque não jogamos sozinhos.
O que pode ser uma ilusão minha.
Ou pensar que jogamos sozinhos pode ser um jogo de ilusão.
De qualquer forma, sempre acreditamos no que queremos, e já disse diversas vezes que ilusão é uma questão de ponto de vista:

"Estou num espaço quadrangular, de madeira torneada e brilhante, sólido com um móvel antigo, com bancos ao longo das paredes, e nestas, anúncios que falam de lojas de tecidos, de tinturarias, de cabelereiros."

às vezes, as mais inúteis atenções [distrações] são as mais impactantes.
as mais relevantes.

"... dizem que a nostalgia é a tristeza que fica mais leve - quando evoco aquelas jornadas nas quais descobri que, na vida, a vida é inalcansável, que a vida está tremendamente por baixo de si mesma e que a úncia plenitude possível é a plenitude suicída.
Mas não saltarei no vazio, amigo Horácio."

Enrique Vila-Matas
trechos de Morrer por Saudade.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.


As palavras podem impactar pela lembrança.
Mas só quando se misturam ao novo é que são realmente marcantes.

7.1.10

Vila-Matas - A hora dos cansados II


"Fico pensando no assunto, e acabo me perguntando se não será talvez um pesquisador, um perseguidor de vidas alheias, uma espécie de detetive ocioso, um contista."


Com alguma frequencia certos eventos, provas cotidianas, me lembram que quando olhamos aos outros, raramente encontramos algo além de nós mesmos.

Vila-Matas - A hora dos cansados


Ah, como alguns livros são maravilhosos.

E o verão pede o mergulho.

Assim, seguirei com a rotina irregular de comentar algumas leituras que me atingem demais, como um raio apaixonado:


"Acelero o passo e, por alguns segundos, sinto um quase desfalecimento, e digo a mim mesmo que vou desabafar sobre o asfalto. Logo percebo que não é para tanto, afinal ainda sou jovem, o que acontece é que sempre me imagino à beira do desfalecimento porque, como mais ou menos intensidade, sempre estou cansado, cansado dessa cidade lamentável, cansado do mundo e da estupidez humana, cansado de tanta injustiça. Às vezes tento superar este estado e luto comigo mesmo, me imponho desafios como esse de persistir, sem objetivo algum, na perseguição de um velho nem um pouco cansado."

Enrique Vila-Matas
A hora dos cansados.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.



Desabar sobre o asfalto.
Posso imaginar a cena:
Numa tarde quente de verão, jogo-me sobre o asfalto.
simples assim: deixo-me em queda, quase que delicadamente.


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Lindo na literatura, mas irreal aos olhos.

Sempre me perguntei sobre o porquê de certos desejos serem afogados tão sem hesitação.
Algo por vezes visível no terrível senso-comum, muro que não nos permite observar os saltos destes desejos, sempre tentativas.

E quando não há hesitação [meu desejo desfalecido],
porque escapam à vista?

Não são nem mesmo como um cheiro estranho no ar,
algo abandonado da possibilidade de conhecimento.

[ uma vez que não é visto, mal pode ser investigado. Perde-se diluído no ar, sem rastros.]

Não. Repetem em voz alta.
Certos desejos mantém-se escondidos ou são afogados

[a loucura vive em terra firme].
São como resquícios distantes, poeira que não pode ser segurada.
Desejos mutando-se em ilusões,
adultos sombrios a povoar a memória.


Talvez terrivelmente.

Sofrem do mal de serem lembrados.

Como a memória cotidiana,
que nos assola como os dias nublados.