28.2.10

Vila-Matas - Em busca do parceiro eletrizante


...tratava-se de uma casa abandonada, e me pareceu que no sentindo mais amplo da palavra, pois encontrei indícios de que, além de ter sido abandonada por seus donos, era uma casa que havia se abandonado a si mesma .
[...]
Mas o infortúnio espreitava no ângulo mais iluminado do meu festivo jardim, e sem me dar conta, comecei a me abandonar.

Abandonar-se: Deixar-se aos acontecimentos intempestivos.

abandonar-se não é somente esquecer-se, é também a fuga da clareza para o turbilhão sem pensamento, aquele que permite as ações intempestivas, o que traz o reconhecimento daquilo que já não sabemos.

temos uma face escura como a lua.
só é possível lançar luz sobre ela obscurecendo todo o resto.

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sobre o conto: fala da busca de um parceiro com quem a vida faria muito mais sentido e sob certos aspectos, sucesso.
Não o parceiro amado, antes aquele que é seu oposto, o complemento e desafio.

Uma vez encontrei o meu espelho,
não foi bonito de ver.
Tem dias em que precisamos ser um tanto cegos para estarmos plenos, daquela felicidade inocente que não é o engodo, é antes o não-saber:
não tenho problemas porque simplesmente não os enxergo.

E se me abandonar, o que acontece?
O limo pode subir pelas canelas.

No entanto, é necessário ir a outras casas.

Enrique Vila-Matas
trechos do conto Em busca do parceiro eletrizante.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.

22.2.10

na mudança de vontades, me deparo com o desconhecido


Algumas ironias mostram o óbvio do mundo.
Estes dias me pediram pra fazer um desenho, e vejam no que deu:
[a saber: o desenho foi um retorno infeliz.]

Há algum tempo não tenho tido uma vontade sincera de produzir imagens.
Ao menos escrevo, e vamos ver o que acontecerá a partir daí.


ao revés - pedem que eu diga quem eu sou


em certo conto de Enrique Vila-Matas, ele fala do revés. Sob alguns aspectos curiosos..
o mais intrigante talvez, ocorra quando um personagem constata que agride outro e no entanto não quer que ele se vá, não quer ficar sozinho.
acaba criando a cruel estratégia de agredir provocando, e o outro, curioso e perplexo, vai ficando.

algumas pessoas não demoram tanto para ir.

quantas vezes agredimos quando, se a gente parasse pra pensar, talvez fizesse exatamente o oposto?
se isso é sintoma de alguma causa que o outro nos inflige/ atiça, como saber?

como entender o sintoma das reações quando elas são um total disparate para com o sentimento?
essas reações, vale sinalizar, tendem a ser as mais instintivas.
o lado boçal do sentimento.

viro o rosto contra aquilo que não sei lidar.

as reações instintivas, tragicamente, têm a esperteza da rapidez.
não permitem que as forcem a agir de outra maneira.

como, então, ensinar ao deselegante instinto a agir de outra maneira?
e como ensinar a sensibilidade, ensinar sem pragmática?

estamos na linha estreita da sensibilidade e o auto-controle manipulador
[a saber: quase sempre ilusório, diversas vezes corrosivo].
a alegria de agir de acordo com o sentimento, contra a onda selvagem do instinto, é um encontro.

existe fórmula para este encontro?
o encontro não é linha, é acontecimento.
no entanto, se os acontecimentos ocorrem a partir do desejo, existe uma porta aberta.

...vou perseguindo a luz no fundo da penumbra difusa.
e assim vou encontrando o caminho que às vezes se perde, outras vezes se encontra, e outras vezes ainda, se transforma.
de qualquer forma, já disseram:
não encontramos nada que não estejamos perseguindo.
e outros disseram: o que importa é a busca.

acredito no que quero acreditar, viver é ilusão bem articulada.

reflexões extraídas a partir da leitura do conto
Pedem que eu diga quem eu sou,
de Enrique Vila-Matas
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.

21.2.10

Vila-Matas - Uma invenção muito prática


Mas logo me pareceu que era justamente o contrário. Era como se pedaços de sua memória estivessem se desprendendo de sua fronte e eu pudesse assistir ao insólito espetáculo de ver como, ali mesmo, naquele exato instante, sua mente ia se esvaziando em público, lentamente, para ficar em branco, despossuída tragicamente de toda lembrança.

não preciso viver, se puder sempre inventar.


Enrique Vila-Matas
trechos de Uma invenção muito prática
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.

Vila-Matas - a loucura da escritura


comentários, reflexões e invenções:

Porque não sei se você sabe, mas a morte é a verdade do amor, do mesmo modo que o amor é a verdade da morte.
E no entanto, me pergunto: E os amores escapistas, nada densos...?
a morte é o abismo em que estes amores não mergulham.
mergulham em outros. quais?

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Achei muito penoso que isto acontecesse comigo, precisamente comigo, que nunca quis incomodar ninguém e sempre tentei passar por este mundo com passos de bailarina, leve, na ponta dos pés pela vida. E quis me matar, é verdade, você não está enganada.
É diferente da insistência em ser invisível, esta vontade por vezes histérica, mas raramente delirante.

Esta mulher falou com muita sensatez, e, portanto, de louca parece não ter nada; mas, no final, seu relato se esgarçou de modo alarmante, e entrou com certo desvario nas águas pantanosas do fraque e do bocejo, uma associação um tanto delirante, o que me leva a pensar que, de vez em quando, a razão desta anciã se ofusca gravemente ou, dito de outra forma, com essa mulher, aliás com todas as mulheres, nunca se sabe, pois já faz tempo que a observo e a analiso e ainda não tenho nada claro.
Antes, a anciã associava o fraque e o bocejo a uma sensação de horror embrionária, infantil. E dizia: ...associei ao tédio profundo e enorme que domina nossa vida neste mundo de fraque e bocejo.
o tédio é o horror, e o mundo de máscaras e fraque negro é ilustração, uma diversão burlesca.
Viva às ofuscações, à gravidade do sentir.
em termos mais práticos: ...esta vida tediosa neste mundo de vizinhança horrível e bocejo profundo.
mundo adormecido sem chance de vigília. como a anciã está nele? exatamente em vigília, nem aqui nem lá. posição confortavél, ingrata somente ao longo dos anos esparsos, corroendo o fígado discretamente.


... e lembrei que existe quem escreva cartas para se vingar de alguém, ou de alguma coisa, ou ainda para fugir da obssessão constante da morte, ou para escapar do grande bocejo universal, ou simplesmente para passar o tempo, o que já é muito, e assim se livrar da loucura que, cedo ou tarde, ameaça todos nós, e pensei que se a loucura era todo um mistério, também o era a escritura, e que [...] o que predominava não era o mistério da loucura, mas o mistério da escritura.
e escrevendo, me reconheço.
arma disparada no nublado dos dias.

...pois de fato eu tinha procurado por ele com rigor e infinita vontade, ali naquele sanatório. Ninguém consegue nada que não esteja perseguindo, e eu tinha ido a esse manicômio precisamente buscando a confirmação de uma grande suspeita: a de que a solidão é impossível, pois está povoada de fantasmas.
[...]
Vim ver minha amiga Rita Rovira, e já a vi, de modo que estou indo embora.

enlouquecer a escrita alheia é um prazer resignado à atenção e o desejo de viver a escrita, tomá-la para si, engolir as palavras e as imagens.

Enrique Vila-Matas
trechos de Uma invenção muito prática
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.


Vila-Matas - As Noites da Iris Negra


"Logo ao chegar em Port del Vent tive a obscura sensação de que vir para esse lugar significava abraçar uma certa ordem, integrar-se, aceitar alguma coisa como a delegação de uma continuidade, como se chegar ali implicasse que não pode ser indigno de quem antes aqui esteve. Tem que ser como eles. Agora (parece nos dizer o povoado) parece ser a sua vez."

Enrique Vila-Matas
trecho de As Noites da Íris Negra.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.

...às vezes as metáforas ao acaso são impressionantes.
e as submetáforas têm sentidos dispersos.

entrar na dispersão para fazer sentido.
a dispersão também é ensaio. algo como estar inconsciente no meio, estar flutuante, esquecer-se.

só depois de esquecer é que é possível lembrar.
lembrar como movimento de rasgar os papéis,
[os rascunhos nunca são descartados: vão para outro lugar].
reescrever com tudo o que se escreveu antes na cabeça e nos olhos,
reescrever em papel cinza.

na ausência de linhas de controle, crio linhas desenhadas a sangue frio,
linhas que se confundem com que é escrito,
escritos que se confundem com o desenho [também linha] impresso a fogo nos papéis.
linhas profundas e rápidas,
deixam poucos vestígios porque olham para frente.
o sangue frio não é derramado,
é azul e está no fundo dos olhos.
é também estranhamente ligado ao passado.

Quando paro, começo a caminhar mais firmemente.


14.2.10

sobre o ver-se


publicar é dar um passo em falso no vazio.

é também ter outros olhos.
é também exercício do engano e do auto-conhecimento.

Vila-Matas - A Arte de Desaparecer


mais uma vez, comentários íntimos:
pensar sobre o jogo do anonimato e a função de viver/ escrever:

E sempre tinha existido nele uma recusa total ao protagonismo. Perder, por exemplo, era um jogo que ele sempre gostou.

Perder é vencer no jogo do "não estou aqui".

[...] fazendo-se passar por estrangeiro [...] sensação de extravio.

qual é a sua posição confortável no mundo?
conhecer todos é também não conhecer ninguém.
artifício de não ser visto, estando visível.

Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução.

é necessário empenho.
desejo e vontade, para fugir das redundâncias....

... e também a impressão ou ainda a incerteza de que estou chegando à última etapa de uma viagem a qual fui aprendendo lentamente o difícil exercício de saber se perder no emaranhado do mundo impresso.
[...]
Publicar era e é, para mim, algo assim como arriscar-se a dar um passo em falso no vazio.

Antes, a esposa diz: ... nunca deixou que eu lesse os seus papeis, e por isso sempre vivi sem saber sobre o que você realmente escrevia.
ela não sabia sobre o que realmente ele vivia.

Ao final, Anatol sentiu doce o gosto do exibicionismo, e para viver outra vida, deixou sua obra impressa, e desapareceu mais uma vez.
Que tipo de exibicionista Anatol era?
Se todos somos em parte, mas de quais tipos?

acredito que ele não sabia do gosto de ser visto, e poder fingir que era milhares.
somos milhares, sempre.
e posso fingir muitos outros e mostrar muitas nuances.
a ficção como verdade e a verdade transmutada, porque viver é assim, enganar e se enganar.
é se perder observando os outros e esquecendo-se de si mesmo
[até que um íntimo lhe cutuque: - volta!].


Enrique Vila-Matas
trechos de A Arte de Desaparecer.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.


12.2.10

Vila-Matas - para a névoa irreal


À névoa azul ardente da Africa.
e dos dias que não conheci.
dos lugares que vivi em pensamento - some imagination.

é também em homenagem à irrealidade da névoa azul ardente da Africa que escrevo esta seleção.
só não é plagio porque é declarado,
só não é autoral pelo mesmo motivo.
mas antes, prefiro dizer que é uma ficção/documetário íntimo.
porque brincar com a tênue linha é desejo de caminhar entre dois mundos,
é desejo de ser vista no anonimato.

- O que vai ter para o jantar? - perguntou um exigente Bernd.
- A morte - ela disse. Apenas a morte.
[...]
Valia a pena deixar de lado a ideia do forno e gozar fugazmente da expressão de horror e surpresa de seu marido quando, pela primeira vez em trinta anos, a visse rebelar-se contra a sufocante violência de sua enorme indiferença.

eu já dizia isso há muito tempo: a indiferença é a morte.
a indiferença é um grito surdo, um raio de dor penetrante, sem voz.

Mas antes de lançar sobre ele o pote, disse a si mesma que apagaria as luzes da casa e apavoraria os três. Não pela escuridão, mas porque com sua voz rouca de gaivota gritaria o próprio nome na escuridão. E assim o fez, mesmo que ao final não tivesse apagado as luzes mas se limitado ao grito:
- Rosaaaaaaa Schwaaaaaaarzer.

sim. penso que todos nós pensamos em gritar.
e gritamos silenciosos muitas vezes.
mas o grito silencioso não se propaga, irradia para dentro.
Particularmente, Rosa me fez pensar em gritar o nome de alguns, algumas vezes, bem à sua frente. Para que olhassem a si próprios e me deixassem invisível.

A felicidade mata, e esses suicidas imitam não o inimitável, mas o inexistente, pensa Rosa Schwarzer enquanto pensa que também a irrealidade é desagradável.

No fundo, tudo está em perfeita e triste ordem.

Rosa escolhe o desagradável da irrealidade, apesar da morte irreal.
e assim penso em quantas vezes a realidade é muito mais surreal.
é assim que frequentemente o mundo se abre à novidade, bem à minha frente.
e escondo-me nos livros para pensar o que há de banal,
porque a novidade do mundo se esconde nas pequenas coisas, nos olhos bem abertos.
a novidade esconde-se no desejo e no profundo.
o profundo que penetra no peito fundo e pode ser sempre diferente.
às vezes me entra pelos ouvidos,
às vezes pela garganta.

não todos os dias.
em alguns, desapareço.

Enrique Vila-Matas
trechos de Rosa Schwarzer volta à vida.
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.