21.2.10

Vila-Matas - a loucura da escritura


comentários, reflexões e invenções:

Porque não sei se você sabe, mas a morte é a verdade do amor, do mesmo modo que o amor é a verdade da morte.
E no entanto, me pergunto: E os amores escapistas, nada densos...?
a morte é o abismo em que estes amores não mergulham.
mergulham em outros. quais?

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Achei muito penoso que isto acontecesse comigo, precisamente comigo, que nunca quis incomodar ninguém e sempre tentei passar por este mundo com passos de bailarina, leve, na ponta dos pés pela vida. E quis me matar, é verdade, você não está enganada.
É diferente da insistência em ser invisível, esta vontade por vezes histérica, mas raramente delirante.

Esta mulher falou com muita sensatez, e, portanto, de louca parece não ter nada; mas, no final, seu relato se esgarçou de modo alarmante, e entrou com certo desvario nas águas pantanosas do fraque e do bocejo, uma associação um tanto delirante, o que me leva a pensar que, de vez em quando, a razão desta anciã se ofusca gravemente ou, dito de outra forma, com essa mulher, aliás com todas as mulheres, nunca se sabe, pois já faz tempo que a observo e a analiso e ainda não tenho nada claro.
Antes, a anciã associava o fraque e o bocejo a uma sensação de horror embrionária, infantil. E dizia: ...associei ao tédio profundo e enorme que domina nossa vida neste mundo de fraque e bocejo.
o tédio é o horror, e o mundo de máscaras e fraque negro é ilustração, uma diversão burlesca.
Viva às ofuscações, à gravidade do sentir.
em termos mais práticos: ...esta vida tediosa neste mundo de vizinhança horrível e bocejo profundo.
mundo adormecido sem chance de vigília. como a anciã está nele? exatamente em vigília, nem aqui nem lá. posição confortavél, ingrata somente ao longo dos anos esparsos, corroendo o fígado discretamente.


... e lembrei que existe quem escreva cartas para se vingar de alguém, ou de alguma coisa, ou ainda para fugir da obssessão constante da morte, ou para escapar do grande bocejo universal, ou simplesmente para passar o tempo, o que já é muito, e assim se livrar da loucura que, cedo ou tarde, ameaça todos nós, e pensei que se a loucura era todo um mistério, também o era a escritura, e que [...] o que predominava não era o mistério da loucura, mas o mistério da escritura.
e escrevendo, me reconheço.
arma disparada no nublado dos dias.

...pois de fato eu tinha procurado por ele com rigor e infinita vontade, ali naquele sanatório. Ninguém consegue nada que não esteja perseguindo, e eu tinha ido a esse manicômio precisamente buscando a confirmação de uma grande suspeita: a de que a solidão é impossível, pois está povoada de fantasmas.
[...]
Vim ver minha amiga Rita Rovira, e já a vi, de modo que estou indo embora.

enlouquecer a escrita alheia é um prazer resignado à atenção e o desejo de viver a escrita, tomá-la para si, engolir as palavras e as imagens.

Enrique Vila-Matas
trechos de Uma invenção muito prática
Suicídios Exemplares, Cosac Naify, 2009.


2 comentários:

Mayana Redin disse...

tudo muito lindo aqui e encorajador. adoro. beijos

Priscilla Zanini disse...

quem bom, mesmo.
tenho tido tão pouco tempo pra pensar na escrita que às vezes parece que a auto-crítica escapa pelos dedos.
bjs